7 de dezembro de 2010

Perto do Coração Selvagem

A palavra chave em toda obra de Clarice pode ser o sentir. E sentir não é linear, não é correto, claro ou objetivo, sentir é imensidão, perdição. Sentir é ter um coração selvagem de fato.
E foi sob o impactante título de “Perto do coração selvagem” que Clarice Lispector debutou no mundo literário. Talvez a pouca idade da autora tenha sido a força propulsora dos questionamentos de Joana, a personagem central do livro, senhora dos sentimentos nos quais a obra se foca.
Na primeira parte do livro temos a oportunidade de conhecer Joana ainda menina e já questionadora. É sob a ótica da menina Joana que percebemos o constrangimento e, por muitas vezes, o medo que seu jeito incomum provoca nas pessoas a sua volta, no que vale destacar a reação de sua tia ao vê-la roubar e não demonstrar remorso:

“ […] Não posso cuidar mais da menina, Alberto, juro... Eu posso tudo, me disse ela
depois de roubar...Imagine... fiquei branca. Contei a padre Felício, pedi conselho... Ele tremeu comigo... Ah, impossível continuar! [...]”

É também na infância de Joana que temos a oportunidade de conhecer o professor, uma figura que de algum modo marcaria sua vida e seu despertar para a adolescência, sendo sua primeira 'paixonite'. É através dele também que podemos perceber mais claramente a passagem do tempo que marca a segunda parte do livro, focado em uma Joana já adulta.
Clarice Lispector evidencia com maestria as dificuldades do sentir e por isso a narrativa fragmentada do livro pode se tornar um tanto cansativa para alguns ainda na primeira parte. Entretanto com a inserção de novos conflitos na segunda parte ganha novo fôlego e segue prendendo a atenção e, porque não, despertando questionamentos também nos leitores.
Quando ela reencontra o professor, às vésperas de seu casamento com Otávio, o encontramos envelhecido, decadente e ainda assim capaz de despertar um certo interesse em Joana, visto que apesar da idade, da doença e do abandono da esposa o homem não demonstrava grandes tristezas.
Na fase adulta, Joana encontra-se perdida entre lembranças, questionamentos internos e conflitos externos com seu marido, Otávio, e Lídia, prima, ex-noiva e amante de Otávio.
E é através dos conflitos desses três personagens, ora com eles mesmos, ora uns com os outros, que uma nova face da obra se revela diante de nossos olhos.
Não se trata mais apenas do sentir e do perder-se em sentimentos. Agora trata-se também e, talvez, principalmente de solidão.
Otávio se revela uma criatura “[...] para quem a vida nunca passaria de uma estreita aventura individual [...]”, que se refugia em Lídia e faz dela seu porto seguro para o mar tempestuoso que é Joana.
Lídia, noiva abandonada, com sua aparentemente ilimitada capacidade de se doar, de dar sem nada pedir. No fundo também covarde “[...] calada como era, sem ter propriamente o que dizer [...]” ainda tenta se rebelar contra seu estado natural de conformismo ao se descobrir grávida de Otávio. Mesmo essa súbita tentativa não passará disto: tentativa. O comodismo do sempre igual, neste ponto de sua vida, não poderá mais ser superado.
Agora Joana adulta já terá se revelado solitária, incapaz de ser mansa como Lídia, de se recolher à insignificância de seus hábitos como Otávio e incapaz também de permitir que os outros vivam em suas zonas de conforto do mascarar e ignorar sentimentos.
E depois desse passo significativo na viagem de auto-descoberta de Joana seu coração parece encher-se de esperança rumo ao futuro e suas possibilidades de ser.
A esperança é, afinal, também uma possibilidade.
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Reli esse livro esse semestre para uma das minhas aulas e me lembrei do quanto gostava dele. Definitivamente um dos melhores!